O Senhor Jesus nos amou até o extremo, num amor sem dimensões inimagináveis, manifestado em um instrumento no mínimo contraditório: uma cruz. O que era instrumento de suplício, dor, sofrimento e morte, se tornou para nós instrumento de salvação.
“A prática antiga da crucifixão é, sem dúvida, de origem persa; utilizaram-na em primeiro lugar os bárbaros como castigo político e militar para pessoas de alta categoria. Depois, os gregos e os romanos a adotaram. No império romano era geralmente precedida da flagelação e o condenado carregava ele próprio o pau transversal até o lugar do suplício. A crucifixão tinha variantes diversas: a cruz podia ser um simples pau erguido, ter a forma de um tau grego, fixando-se o pau transversal em cima do pau vertical, ou de uma forca de dois paus, ou ainda seguir a forma da cruz latina com o pau horizontal metido mais profundamente no vertical. Um letreiro indicava o motivo do suplício. O condenado podia estar totalmente nu, de cabeça para cima ou para baixo, às vezes pregado, com os braços estendidos. Este suplício só era utilizado para as classes baixas da sociedade e para os escravos. Normalmente a ele não estavam sujeitos os cidadãos romanos, a não ser que a gravidade de seus crimes os houvesse levado a serem considerados merecedores de se verem privados de seus direitos cívicos. Aplicava-se também aos estrangeiros sediciosos, aos criminosos e aos bandidos, por exemplo, na Judéia por ocasião das diversas agitações políticas.
Á crueldade própria do suplício da crucifixão - que dava livre curso a muitos gestos sádicos - correspondia seu caráter infamante, escandaloso e até "obsceno". O crucificado se via privado de sepultura e era abandonado aos animais selvagens ou às aves ferozes. “a morte na cruz é a infâmia suprema”, escreve Orígenes. Por isso, a ela se atribuía grande poder de dissuasão. Era quase que uma forma de sacrifício humano. A ninguém ocorreria encontrar alguma dignidade em quem padecia seus sofrimentos com coragem (...) Estas poucas observações ajudam a compreender a força da "loucura" e do "escândalo" da cruz, que os cristãos apresentavam como mensagem de salvação”. (Dicionário Teológico, o Deus cristão, p.203)
Com a morte de Cristo, a Cruz ganha um novo sentido, deixa de ser objeto de morte e passa a ser objeto de vida, de salvação, a manifestação do amor incondicional de Deus por nós: “De fato, Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16).
Ao contrário do que se pensa ou pareça, ninguém tira a vida do Cristo Jesus, Ele a entrega generosa e livremente. Na cruz o Senhor derrama o seu amor, e quanto amor se derrama na Cruz!
Como não se comover diante de tanto amor? Como não dar uma resposta de amor e fidelidade àquele que se sacrifica de tal forma por cada um de nós, de modo pessoal, único e extraordinário?
No fundo o que nos chama a atenção não é a Cruz em si, mas aquele que nela foi crucificado. Ela é instrumento, o cenário do abandono do Cristo aos planos do Pai, que diante da obscuridade do Calvário, realiza a salvação de todos, confirmando que a morte de Jesus não é um fim certo, mas a confirmação inaudita de sua glória: “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32)
Sim! Ele atraiu a todos com sua Cruz, por isso ela é sinal da nossa fé, da nossa vitória e da certeza de que Ele, o Cristo Senhor, está vivo entre nós. A resposta que damos na Liturgia reafirma e renova esta certeza de que Ele está perto de nós, “no meio de nós!”. Esta é a certeza da nossa fé, de que a Cruz, a morte, o sepulcro, não puderam parar ou deter o Salvador, Ele ressuscitou e nós reverenciamos a sua Cruz como sinal desta vitória e do estupendo amor por nós!
De fato, a cruz é central na mensagem cristã e acabou se tornando “Simbolo do Senhor”, e objeto de culto. Nos primeiros séculos do cristianismo, ela foi pouco representada por conta da ideia de suplicio e sofrimento que trazia. No século III, uma vitória de Constantino ligada à visão que ele teria tido da Cruz de Cristo, difunde a imagem da Cruz no império romano, e a mesma passa a ser vista como “sinal de vitória”. Diante da crise iconoclasta no Oriente, a cruz é considerada o único motivo representável. No século XII, a Cruz começa a ser chamada de “árvore da vida”.
O fato é que os primeiros cristãos e os que vieram depois começaram a representar a cruz, primeiramente sozinha e às vezes com o crucificado, sem intenção realista, mas para celebrar seu valor salvífico. Definitivamente a Cruz deixa de ser objeto de morte e passa a ser gloriosa e triunfal, esplêndida, embora o Ocidente na Idade Média comece a representar dolorosamente o crucificado.
Santa Helena teria descoberto “a verdadeira cruz” (a mesma que Cristo foi crucificado) no século IV, fato que contribuiu para que se desenvolvesse o culto e a devoção à Santa Cruz na Igreja. Data desta época a introdução da adoração da Cruz na Liturgia da Sexta Feira Santa. Na Idade Média a devoção à Paixão e Morte do Cristo ganha força, aqui nasce a via-sacra, que chega à forma definitiva no século XVII.
Ordens religiosas como os passionistas se consagraram ao mistério da Cruz. A Liturgia desenvolve durante o ano as festas da cruz do Senhor. O sinal da cruz sempre foi e o é ainda hoje o sinal que o cristão traça sobre si mesmo, invocando a Trindade; é chamado inclusive o “sinal da nossa salvação”, pois bem, a Cruz é sinal da salvação e não a salvação em si, ela foi instrumento da salvação, a salvação é o Cristo Jesus e somente Ele.
Graças a este desenrolar da História é que hoje temos em nossas casas, mesas de estudo e escritório o crucifixo, e o carregamos também sobre os nossos peitos. Uma antiga canção entoa no seu refrão: “No peito eu levo uma cruz...” Sim, hoje carregamos em nossos peitos a Cruz, este sinal de salvação e amor de Deus por nós. A pergunta é: Temos consciência do compromisso que implica levar este sinal?”. A música continua: “...no meu coração o que disse Jesus...”: A mensagem da Cruz fala ao nosso coração? Ela faz diferença na nossa vida ou simplesmente é um amuleto, um sinal externo que carregamos?
A cruz que o cristão carrega necessariamente tem um peso.
Conta uma estória que um homem julgava sua cruz muito pesada. Fazia a jornada da vida, entre os demais, carregando de má vontade os próprios problemas. Pensou muito em como amenizar o fardo e, um dia _ eureca! _ descobriu que podia serrar um pedaço da sua cruz. Isso o satisfez por certo tempo, até que, de novo decidiu:
- Por que não facilitar a vida? Sou livre, para fazer o que bem entendo com a minha cruz!
E, ligando a intenção ao ato, serrou mais um pedaço. Os anos passaram e muitos pedaços foram cortados. Por fim, o homem levava uma minúscula cruz. Chegando ao término da viagem, pararam, todos à margem de uma vala. No lado de lá, apareceu um Anjo que deu boas vindas a todos e instruiu:
-Deponham suas cruzes sobre a vala. É a medida exata para servir de ponte para cá. Mas cada um só pode atravessar pela própria cruz...
O homem olhou a largura da vala, comparou com sua pequena cruz e olhou para o Anjo. Mas, esse lhe disse:
- É, pena! Você deve voltar juntar todos os pedaços serrados, emendá-los e trazer a cruz inteira, a seu termo."
Cristo quis dividir o peso de sua cruz.
O convite do Evangelho é para que o discípulo “leve sua cruz” com o Mestre: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz, cada dia, e siga-me. Pois quem quiser salvar sua vida a perderá, e quem perder sua vida por causa de mim a salvará”. (Lc 9,23-24). É um chamado dirigido a todos, pois levar a cruz é algo necessário para quem quer seguir Jesus, e exige renúncia a si mesmo.
A cruz conduz “a perder a vida”, não mais no sentido de suplicio, porém, no sentido que Jesus deu à sua vida e a sua morte, para estar com Jesus é necessário com ele ser crucificado: “Estou crucificado com Cristo e não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”. (Cf. Gl 2,20)
Quando o cristão é “crucificado com Cristo”, ele entende a realidade da salvação que é a entrada na morte e na ressurreição de Cristo (Cf. Rm 6,1-11), e depois pensa nesta salvação recebida no batismo à qual é preciso corresponder com o testemunho vivo e encarnado, experenciado na Paixão, Morte e Ressurreição do Salvador.
“Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-Me” (Lc 9, 23).
Não pensemos que, por estarmos neste mundo, podemos viver ao seu sabor como um peixe na água. Não pensemos que, pelo fato de o mundo nos entrar em casa através de certos programas de rádio ou da televisão, nos seja permitido ouvir todos os programas e ver todas as transmissões que fazem. Não pensemos que, por andarmos pelas estradas do mundo, podemos olhar impunemente para todos os cartazes e comprar no quiosque ou na livraria, indiscriminadamente, qualquer tipo de publicação. Não pensemos que, por estarmos no meio do mundo, podemos imitar e assumir os modos de viver do mundo: experiências fáceis, imoralidade, aborto, divórcio, ódio, violência, roubo. Não, não. Nós estamos no mundo. E isso é evidente. Mas não somos do mundo. “Eu lhes dei a tua palavra, mas o mundo os odiou, porque eles não são do mundo, como eu não sou do mundo” (Jo 17,14)
E isso implica uma grande diferença. Classifica-nos entre aqueles que não se alimentam das coisas mundanas e superficiais, mas das que nos são expressas, dentro de nós, pela voz de Deus que está no coração de cada pessoa. Se a escutarmos, faz-nos penetrar num reino que não é deste mundo. Um reino onde se vive o amor verdadeiro, a justiça, a pureza, a mansidão, a pobreza. Onde vigora o domínio de si mesmo, onde ganha sentido pleno o que cantamos: “No peito eu levo uma Cruz, no meu coração o que disse Jesus”.
Cristo nos disse: «nega-te a ti mesmo… nega-te a ti mesmo…»
A vida cômoda e tranquila não é para o cristão. Se quisermos seguir Cristo, ele não pediu nem nos pede menos do que isto: Renúncia.
O mundo invade-nos como um rio na época das cheias, e nós temos que ir contra a corrente. O mundo para o cristão é um matagal cerrado, e é preciso ver onde se põem os pés. E onde é que devemos pôr os nossos pés? Sobre aquelas pegadas que o próprio Cristo, ao passar nesta Terra, nos deixou assinaladas: são as Suas Palavras. Hoje, Ele diz-nos de novo: «Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo…».
Por causa disso, a nossa cruz pesa, talvez venhamos a ser alvo de desprezo, de incompreensão, de zombarias, de calúnias. Podemos ter que nos isolar, que aceitar a desconsideração e abandonar um cristianismo de fachadas.
Mas Jesus continua: «Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-Me». Mais uma vez ressoa em nossos lábios a certeza da canção: “No peito eu levo uma Cruz e no meu coração o que disse Jesus”.
Quer queiramos, quer não, o sofrimento amargura a nossa existência. E, todos os dias, chegam-nos pequenos ou grandes sofrimentos. Gostarias de te livrar deles? Revolta-te? Lamentas? Então, não és cristão. É certo que as vezes também nós acrescentamos pesos desnecessários à nossa Cruz, as escolhas que fazemos e as experiências que vivemos de livre e espontânea vontade, quando não precisaríamos escolher isto ou aquilo ou viver esta ou aquela realidade. No entanto, Cristo amou a sua cruz, amou o seu sofrimento, pois Ele sabia qual seria o resultado final. O cristão autêntico também ama a cruz, ama o sofrimento, mesmo entre lágrimas, porque sabe que tem valor. Não foi em vão que, entre os muitos meios de que Deus dispunha para salvar a humanidade, escolheu o sofrimento. Mas Ele, depois de ter levado a cruz e de ser nela crucificado, ressuscitou.
A ressurreição é também o nosso destino. Se aceitarmos com amor – em vez de o desprezarmos – o sofrimento que nos vem da nossa coerência cristã e todos os outros que a vida nos traz, havemos de experimentar, então, que a cruz é o caminho, já nesta Terra, para uma alegria nunca antes experimentada: “No peito eu levo uma Cruz, no meu coração o que disse Jesus!”.
Sem. Rodolfo Marinho de Sousa