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terça-feira, 1 de setembro de 2009

Observar a Lei de Deus: Unir o Coração a Ele!

1. Não se vive religião olhando para o passado, mas olhando para frente, embasados na fé na presença de Deus que nos convoca, assim como convocou o Povo de Israel a assumir um estilo de vida diferente do estilo de vida de outros povos, que se apresentou diante destes como um Povo ligado de um modo todo especial ao seu Deus.
Israel tinha essa consciência e conservava em si um orgulho explicito por causa de sua Lei, transmitida pelo próprio Deus; fato que lhes dava a segurança de que esta mesma Lei superava em sabedoria todas as outras leis humanas, de que não precisavam nela nada acrescentar ou tirar, e que pela observância desta Lei, o Povo de Israel, era o Povo separado de Deus, o único existente diante de sua Presença (Cf. Dt 4,1-8).
A Lei, quando bem observada foi motivo de salvação para Israel. Porém, nos momentos de infidelidade e de má observância dos preceitos do Senhor, de sinal de Aliança e liberdade, a Lei se tornava cadeia e sinal de escravidão.
Outro perigo mais grave que podemos identificar aqui é o fato de achar que ao observar a Lei o homem poderia se salvar sozinho. É óbvio que a Lei transmitida por Deus é condição essencial para selar a Aliança proposta por Ele mesmo. A Lei é condição de Salvação. Ser fiel à Lei é ser fiel a Deus, pois esta nasce do seu próprio coração. Neste sentido, esta Lei dada ao Povo de Deus, é prova e resposta do seu amor para com o mesmo.
O Salmista nos confirma esta verdade, enchendo o nosso coração de alegria, ao nos afirmar que quem se submete à Lei de Deus é admitido à sua Presença: “Aquele que morará na Casa do Senhor é aquele que caminha sem pecado e pratica a justiça fielmente” (Cf. Sl 14).

2. Em um contexto parecido, São Tiago vem nos falar de uma religião que se constitui verdadeira como vida no amor: “Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg 1,27).
Ouso aqui, fazer uma reflexão “um tanto desajustada” desta visão de Tiago, melhor dizendo, fora da ordem natural do texto.
Com a expressão “Não se deixar contaminar pelo mundo”, Tiago vem destacar alguns aspectos que nos fazem lembrar que Deus igualmente nos separou, não da mesma forma como fez com Israel, libertando-o da escravidão do Egito e colocando-o em uma terra preparada para a sua habitação diante de sua Presença; mas, de maneira semelhante em sua gratuidade e bem querer.
Tiago vai nos dizer que é dele, Pai das luzes, em quem não existe mudança, que vem todo dom precioso e toda dádiva perfeita para nós (Cf. Tg 1,17); E ainda nos mostra a nossa eleição por parte de Deus: “De livre vontade ele nos gerou, pela Palavra da Verdade, a fim de sermos como que as primícias de suas criaturas” (Tg 1,18) e vai continuar nos dizendo que é preciso receber a Palavra de Deus com humildade e praticá-la, pois somente ela é capaz de nos salvar (Cf. Tg 1,21b-22).
Ora é a Lei de Deus que é semeada como Palavra de verdade no coração humano. Trata-se aqui da própria Palavra de Deus impressa no coração do homem, que após fixada se torna norma e guia da sua vida. Assim, voltando ao versículo 27, do capítulo 1 da Epistola de Tiago, entendemos que a vivência da Palavra de Deus e a observância de seus preceitos são traduzidas em obras, expressão concreta do amor a Deus pelos irmãos: “assistir aos órfãos, e as viúvas em suas tribulações”.

3. Ainda podemos citar a Palavra de Jesus ligada ao mesmo contexto de religião e Povo separado para Deus, Palavra que é um tanto “arisca” para aqueles que “se dizem” praticantes de uma religião que leva ao encontro de Deus; estamos falando dos fariseus e mestres da Lei.
Jesus é questionado a respeito do costume de lavar as mãos antes das refeições, tradição antiqüíssima dos judeus, prevista inclusive na Lei Mosaica, e de outros costumes judaicos narrados na Sagrada Escritura. É questionado, pois, seus discípulos tomavam as refeições sem antes terem lavado suas mãos. Diante deste fato, Jesus nos fala no Evangelho a cerca de certas tradições, qualificadas por ele mesmo como tradições humanas, inventadas por aqueles que estão longe de Deus, mas se julgam Dele próximos.
Ora, nós entendemos que uma tradição só é válida se a mesma ajudar na observância dos Mandamentos, na vivência da Palavra de Deus, e na partilha do Corpo e Sangue de Cristo. Porém, na narração do Evangelho, Jesus nos mostra que as tradições, de que o evangelista fala, só são válidas para disfarçar a perversidade daqueles que as vivem. Jesus deixa bem claro, por meio de sua Palavra e postura que estas tradições só são válidas se elas se servirem para unir o coração do homem a Deus. Se não forem vistas deste modo, as tradições e certas religiosidades não aproximam de Deus, mas, afastam o homem de sua Presença (Cf. Mc 7,1-8.14-15.21-23), e ameaçam anular o Evangelho.

4. No texto de Marcos, podemos ler no questionamento acerca da atitude dos discípulos, que os mesmos comiam com “mãos impuras” (Cf. Mc 7,2). Jesus responde sabiamente: “O que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior” (Mc 7,15); e continua: “Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo” (Mc 7,21-22).
Diante disto, nos questionamos: “Tais sentimentos, certamente não provêem de Deus, portanto, de onde eles podem vir, senão do coração do homem?”. E mais: “Adianta se disfarçar atrás de tradições e religiosidades, e manter dentro do peito um coração assim?”.
À primeira vista pode parecer que Jesus veio para anular as leis da Constituição Mosaica, mas, ao contrário, Jesus veio para dar um novo sentido e completá-la, e assim condena toda espécie de legalismo, lançando o convite à observância sincera da Lei, pois, o que adianta cumprir escrupulosamente preceitos e estar com o coração cheio de vícios e males?

5. É preciso ter cuidado! O farisaísmo e o formalismo não são somente atitudes do passado e nem exclusividade dos fariseus e mestres da Lei da época de Jesus, mas são tentações que renascem continuamente, entre pessoas e instituições que começam com as mais puras e retas intenções – como nós vemos descaradamente nos meios de comunicação – e até mesmo no Seio da Igreja de Cristo.
O pensamento farisaico bloqueia o espírito missionário da Igreja; traz a Lei não como preceito a ser seguido com sinceridade, mas como norma ou regra a ser imposta violentamente; faz o cristianismo se tornar em algo passivo, legalista, exterior, superficial, preocupado apenas em obedecer às normas estabelecidas, tão somente por coação, com medo de castigos e repreensões, que acabam por desvirtuar a resposta pessoal e responsável ao chamado de Deus.
Em outras palavras, o pensamento farisaico “cria” cristãos que se unem a Deus não pelo temor, mas, pelo medo, impedindo um encontro com Deus que não acontecerá enquanto a liberdade e a intimidade não tomar o lugar do pensamento farisaico imposto.
Farisaico também é o pensamento que encerra nele mesmo a ação de Deus ao longo da história, quando o Criador, o Redentor e o Espírito Santo são reduzidos a meras forças e categorias humanas que qualquer um que se diz sábio possa explicar. A fidelidade, a espiritualidade, a intimidade, a oração, a adoração são entendidos como simples atos exteriores, e não como passos essenciais para se viver de coração, de alma e corpo entregues à vontade de Deus e sua Providência. Deste modo, passo a passo, o que entendemos por espiritualidade vai se tornando algo vazio, estéril e morto.

6. Uma religião não se faz somente de tradições, de doutrinas, dogmas, normas e leis, que o fiel tem que observar cegamente, como por obrigação. Vista somente assim, ela, a religião, deixa de ser acesso a Deus e se torna acesso ao vazio, e ao invés de invocar o Espírito de Deus, ela vai invocar o espírito farisaico.
Claro que este “conjunto” faz parte da religião, e devem sim ser entendidas, observadas e seguidas; No entanto, não na escuridão, mas, na claridade, em viva visão, que leve a obediência com consciência e de coração. Neste ato o cristão tem que entender que ao crer, professar, seguir, observar e obedecer, ele está chegando cada vez mais perto de Deus, porque “ele, o homem, está debaixo de todo este compendio”, não por religião, tradição, obrigação ou qualquer outra coisa. O homem se encontra nesta posição, simplesmente porque ama de todo o Coração o Senhor Deus e tudo aquilo que Ele traz junto de sua Lei. O homem que assim age, de fato, escolheu a boa parte, e purificou o seu Coração no seguimento de Jesus Cristo.
Sem a “purificação do coração” não há observância da Lei de Deus, pois visa esta justamente libertar o homem das paixões e dos vícios para torna-lo capaz de amar a Deus e ao próximo.

7. Somos chamados, todos nós, a sermos profetas, que com a voz e um testemunho vivo de Cristo Ressuscitado, proclamem libertação para a Igreja, para que a mesma não conserve em si um espírito farisaico, mas sim um espírito de fidelidade ao Deus Onipotente, uma fidelidade dinâmica, conquistadora, missionária, que resulte tão somente no encontro pessoal e comunitário com o Salvador.
Aliás, uma verdadeira religião leva a isto: ao Encontro com o Senhor da Vida e da História!


Texto escrito para 
a Celebração do 22o. Domingo do Tempo Comum
30/08/2009